O Antigo Testamento resgata a compaixão humana, como valor que já difundido por outras culturas. Contudo, amplia criticamente sua percepção e lhe oferece uma faceta divina, aplicando a Deus a imagem do Pai misericordioso.
Muitas vezes, difundiu-se, em discursos religiosos e em catequeses deficitárias, que o rosto de Deus, na Primeira Aliança, era o de um Deus vingativo, destruidor das nações, irado pela infidelidade humana e que isso, no Novo Testamento, foi superado por Jesus Cristo, revelador de um Deus totalmente diferente. Destaca-se aqui uma grave oposição entre Primeira e Segunda Aliança. Sem um estudo sério das Sagradas Escrituras, podemos cair no erro de sustentar tal equívoco em relação à Teologia Bíblica.
Vamos refletir alguns textos do Antigo Testamento e perceber como se mostra o tema da misericórdia, para podermos fazer uma reflexão sólida sobre a presença do cuidado de Deus para com seu povo.
No relato bíblico da criação (Gn 1,1-11), percebemos o ato criador de Deus, fruto de sua bondade e generosidade. A criação, nesse contexto, é ‘desmotivada’, gratuita: tudo brota do coração misericordioso de Deus, fonte da qual tudo se origina sem qualquer motivação aparente. O olhar de Deus reflete a bondade da criação: “E Deus viu que era bom”. Essa expressão se repete ao longo da narrativa e mostra que o cosmos foi originado na bondade. Na criação do ser humano, à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27), percebemos um chamado de Deus para a humanidade ser co-criadora, após o descanso divino. Tornar-se sua semelhança, significa ser misericordioso no mundo em relação a toda criatura.
Os capítulos que se seguem no Gênesis mostram a introdução da corrupção e do mal na criação bondosa de Deus. No episódio da construção da torre de Babel (Gn 11), a prepotência humana chega ao seu auge, querendo atingir os limites de Deus, na tentativa estéril de chegar aos céus. Da harmonia do cosmos, passa-se ao estado caótico da confusão e da dispersão. Porém, a intervenção da misericórdia divina clama a unidade para a qual o ser humano foi criado: unidade entre seus irmãos, com a criação e com o próprio Deus.
No chamado de Abraão (Gn 12), Deus escolhe um ser humano para ser pai da humanidade. Em Abraão, Deus escolhe seu povo para ser sinal da sua misericórdia a ser estendida a todas as nações da terra. A benção de Deus se fundamenta na terra e na prole numerosa. Assim, o rosto misericordioso de Deus se manifesta nas primeiras páginas da Bíblia como quem responde ao mal semeado pela terra com uma eleição que se torna canal de benção e de amor para todos os que forem fiéis a essa aliança.
No Êxodo, percebemos como Deus se inclina para ouvir o clamor de seu povo. No monte Horeb, no chamado de Moisés (Ex 3), Deus se volta claramente para a situação de escravidão à qual o povo hebreu estava submetido na casa do faraó, no Egito. O sofrimento humano grita ao coração de Deus e este chama Moisés para promover a grande libertação dessa situação de aniquilação da dignidade humana. Deus revela sua misericórdia inserida no drama da história humana e Moisés é chamado a agir em nome da misericórdia divina que liberta e promove a vida nova, ao conduzir seu povo à terra prometida. Esse momento de libertação será tão marcante que, em vários textos bíblicos, isso será recordado, lembrando-se o “Deus que nos libertou da terra do Egito”. Assim, Deus vai guiando o povo, mostrando-lhe sua face cheia de compaixão e de misericórdia.
Na literatura profética, Oséias esboça a misericórdia divina. Sua atuação se dá num contexto difícil da história de Israel. O reino do norte está prestes a desaparecer. Diante dessa situação dramática, elaborará sua mensagem. A aliança com Deus foi rompida e o povo eleito se afastou do amor de Deus. Deus se manifesta como aquele que se sente totalmente comovido e afetado pela infidelidade humana: “Meu coração se contorce dentro de mim, minhas entranhas comovem-se” (Os 11,8). A misericórdia divina move Deus a se deixar afetar pela situação de miséria humana. Porém, seu agir de justiça que promove o direito dos fracos é diferente do agir humano. Em Isaías vemos que Deus poderia se irar e abandonar o povo definitivamente à própria sorte. Mas, a misericórdia transborda em seu agir, sua soberania se dá no perdão e na absolvição da culpa humana (Is 55,7).
Os profetas manifestam a opção de Deus pelos pobres. Tomemos Amós como exemplo escancarado disso. Ele denuncia a exploração e a opressão por parte dos mais ricos da sociedade (Am 2,6-9). A justiça e o direito são as bases de uma sociedade que valoriza a vida e são, também, o fundamento da verdadeira religião, que não se deve basear em sacrifícios e cultos religiosos que se tornam vazios e estéreis pela opressão humana (Am 5,21-27).
Dentro da literatura sapiencial, encontramos os Salmos que manifestam a misericórdia divina através de seu estilo lírico e poético expresso nos hinos e cânticos da fé de Israel. O Salmo 103 afirma que Deus é cheio de misericórdia e de amor. Dentre os Salmos penitenciais, por exemplo, o Salmo 51 mostra a confiança do penitente na misericórdia de Deus que resgata a dignidade do pecador.
Por fim, podemos afirmar que, no Antigo Testamento, a misericórdia não assume um caráter simplesmente espiritualista, e muito menos, sentimentalista. A misericórdia de Deus tem endereço certo: encarna-se na história dos sofridos de Israel. Deus não olha a infidelidade de seu povo. Como resposta ao pecado, oferece-lhe uma vida nova. A misericórdia de Deus é uma constante na fé de Israel. Em vários momentos este poderia abandonar seu povo à sua própria sorte: mas não, ele sempre responde com o critério da esperança e do amor. Afinal, somos frutos da bondade generosa de Deus que nos envia ao mundo para sermos sinais de sua misericórdia.